"Minha apresentação de Melanie Klein esboçará, portanto, uma leitura de sua obra entre Freud e Lacan, confiando em inspirar curiosidade pelos textos em si, única maneira de barrar a degradação do discurso psicanalítico constituída por qualquer resumo” (Násio)
Melanie Klein reconheceu inteiramente a contribuição de Freud,inclusive a pulsão de morte, esteve na origem tanto do fundamento analítico da prática dos tratamentos com crianças quanto de uma grande corrente da psicanálise, em que a clínica do narcisismo chegou a seu auge.
A técnica psicanalítica do brincar e suas descobertas
Para Klein, é preciso guardar os detalhes mais ínfimos do brincar; assim, os encadeamentos aparecerão e a interpretação será efetiva. É necessário levar em conta o material que as crianças fornecem durante a sessão: brinquedo, dramatização, água, recorte ou desenho; a maneira como brincam; a razão
por que passam de uma brincadeira para outra; e os meios que escolhem para suas representações. “Todo esse conjunto de fatores, que muitas vezes parece confuso e desprovido de significação, afigura-se-nos lógico e repleto de sentido, e suas fontes e os pensamentos que lhe são subjacentes revelam-se a nós, quando o interpretamos exatamente como um sonho”
Antes de interpretar a sequência do brincar que tem esse valor deformação do inconsciente — ou seja, de configuração do gozo e, portanto,de reabsorção da angústia —,Melanie Klein só interpreta quando a criança exprime o mesmo material psíquico em versões diferentes; quando essas atividades são acompanhadas por um sentimento de culpa manifesto, ou então de angústia; e quando isso permite um esclarecimento sobre certos encadeamentos, ou quando o material é efeito de uma interpretação anterior.
Uma interpretação gera a ocorrência de outra brincadeira, que por sua vez é interpretada, e assim sucessivamente. Então, a angústia diminui, na criação de uma nova simbolização. Para Melanie Klein, as condições práticas e teóricas da interpretação são as mesmas na análise dos adultos. Não é a idade do paciente que é determinante, mas é a atitude, a convicção interna do analista que descobre a técnica necessária e apropriada. Concluamos o que se refere à técnica psicanalítica do brincar. O aparelho psíquico da criança pequena tem um alto nível de tensão: a angústia muito presente, muito intensa, não pode ser administrada pela aparelhagem do eu, o princípio de prazer; as representações só avançam por essa opacidade deslocando-se passo a passo, palavra por palavra. A associação das representações, isto é, a condensação, é difícil por causa dessa angústia, e só se realiza num modo de expressão particular: o brincar, que tem o mesmo estatuto simbólico do sonho.
Assim, constitui-se aos poucos o princípio de prazer, que terá o efeito de levar o sujeito de representação em representação, de moção pulsional em moção pulsional, de objeto internalizado em objeto internalizado, instaurando tantas representações quantas sejam necessárias para manter o mais baixo possível o nível de tensão que regula todo o funcionamento do aparelho psíquico.
O tratamento é concebido como um estabelecimento do princípio de prazer, ou seja, como a constituição do eu.
Há que ver as coisas com clareza e precisão:existem três maneiras de lidar com a selvageria humana, com o gozo e a angústia, ou seja, com a força sem fé nem lei que está dentro de cada um de nós.
A posição de princípio que colocou o brincar no cerne da formação do inconsciente permitiu a Melanie Klein fazer descobertas. Eis aqui as mais importantes:
1. Primeira Descoberta: A formação arcaica do supereu ou o dever de gozo
O supereu é definido como herdeiro do complexo de Édipo: são as proibições parentais que permanecem inscritas no sujeito após o declínio da relação edipiana. O supereu constitui-se por volta dos 4-5 anos,através da internalização das exigências e proibições. E isso, segundo um processo paulatinamente elaborado por Freud, que é o da identificação.
Melanie Klein constatou que os pequenos pacientes neuróticos de menos de quatro anos sofriam a influência de um supereu que ela descreveu como feroz, caprichoso, de uma severidade tirânica e implacável.
Por trás do nascimento do supereu esconde-se não a identificação com os pais depois do Édipo, mas “a primeira e mais importante identificação do indivíduo: a identificação com o pai da pré-história pessoal” seja, com o pai-mãe indiferenciado de antes do reconhecimento da diferença entre os sexos, com os pais combinados da cena primária, além dos quais perfila-se a figura do Pai da Horda, aquele que goza com tudo.
Essa identificação primordial é direta, imediata e mais precoce do que qualquer investimento objetal. A exigência incorporada é esta: “tens que ser como o pai”, como o Pai da Horda, ou seja, “tens que viver, tens que gozar com tudo”.
Depois, as escolhas objetais pertencentes ao primeiro período da sexualidade infantil, que concernem ao pai e à mãe da relação edipiana, vêm reforçar a identificação primária, porém
Inversamente . O resultado é o supereu edipiano, que vem contrariar energicamente a exigência do supereu arcaico, dizendo: “ Não tenso direito de ser como o pai, não tens o direito de fazer tudo o que ele faz, de gozar com tua mãe; tens que viver, mas em outro lugar.” O supereu não se esgota, portanto, no preceito de gozar, mas compreende também a interdição do objeto de gozo do pai. Apresenta a síntese da concepção kleiniana do supereu.
Melanie Klein reconheceu na incorporação do preceito de gozo que se produz durante a fase oral canibalesca o núcleo do supereu, ou o supereu arcaico. A influência do supereu arcaico, portanto, é a força incorporada que
Obriga imperativamente a criança a viver. Essa força, tão intensa a ponto de ser devastadora, “pulsão de destruição”, é estrangulada no nível dos orifícios do corpo, que são ritmados pelo tempo humano. Desse refreamento brotam pulsões parciais, orais, anais e uretrais, de um sadismo particularmente violento. As descrições do sadismo, tantas vezes repetidas por M. Klein, são bem conhecidas; o sadismo tem uma importância considerável no início da constituição do eu. Entretanto, a intensidade do sadismo contra o exterior, contra os objetos externos, exprime-se de uma forma muito edulcorada, pois as fantasias extravagantes do começo do desenvolvimento nunca se tornam conscientes. Essa intensidade manifesta-se de três maneiras: pela angústia que dificulta a associação verbal, como vimos; pela crueldade da criança para com objetos ou pequenos animais; e pelas fantasias: a criança alimenta, ao lado de suas relações com os objetos reais, porém num outro plano, relações com imagos fantasísticas que são excessivamente boas ou más.
Os bons e maus objetos internalizados, portanto, são uma derivação do sadismo; voltaremos a esse ponto. A ordem de viver desenfreadamente, ou seja, as pulsões destrutivas e a deriva fantasística que a acompanha, só são temperadas no momento do declínio do Édipo, quando a criança renuncia a sua mãe. A renúncia à mãe e,mais precisamente, ao objeto da mãe que é fonte de vida,o seio, é uma batalha incessante, que começa desde o desmame.
2. Segunda Descoberta: A precocidade dos estádios do conflito edipiano,“fina flor” do sadismo
As tendências edipianas são liberadas depois da frustração que a criança experimenta no momento do desmame, ou seja, por volta de 2-3 meses, e são reforçadas pelas frustrações anais e uretrais sofridas durante a aprendizagem da higiene. Todo o percurso edipiano é acompanhado de angústias persecutórias e de uma culpa intensa. A angústia e a culpa não nascem dessa iniciativa incestuosa edipiana,mas, inicialmente, das pulsões destrutivas. “A culpa é, na realidade, uma reação às pulsões destrutivas”, das quais as pulsões libidinais são inseparáveis. Em outras palavras, a culpa é um produto da formação do supereu e da incorporação: a criança, em sua fantasia, faz desse mecanismo um teatro de horrores em que, cortada e separada da mãe, ela quer recuperá-la, mordendo-a, devorando-a, retalhando-a para lhe roubar o seio, o pênis do pai,suas fezes etc. Ela se sente culpada por lhe ter feito mal e teme, por retaliação,uma punição idêntica da mãe introjetada: o supereu, por seu turno, morde,retalha e quer se apropriar do corpo da criança. Essas angústias e essa culpa intensa podem até impedir a articulação incestuosa edipiana, e constantemente a comprometem. É que o conflito edipiano só pode resolver-se no lugar de seu nascimento: o corpo da mãe.
Na concepção kleiniana da problemática do Édipo,o lugar conferidoà mãe é central.
3. Terceira Descoberta: Três aspectos do primado da mãe
Primeiramente, a mãe kleiniana aparece como a metáfora, a imagem da Outra Cena , para empregarmos uma noção freudiana, ou seja, como o lugar onde se encenarão, para o sujeito, suas fantasias e seus desejos inconscientes, e portanto, a simbolização e a constituição do eu, entendida como constituição do princípio de prazer. A tendência edipiana, com efeito, concerne principalmente ao corpo da mãe,à imago do corpo materno, que é concebido como “a cena de todos os processos e de todos os acontecimentos sexuais”
Por outro lado, “esse corpo representa, no inconsciente, um tesouro que contém todas as coisas desejáveis, que só podem ser retiradas dali”. Se a relação com a mãe, portanto, é desde logo conflituosa, é porque nesse terreno se realiza não uma relação direta e dual entre ela e a criança,mas uma relação em que já existe sempre um terceiro na competição: o seio,que ela dá ou não, as fezes que ela exige, e o pênis do pai que ela encerra. Assim, a mãe é a cena, o lugar dos deslocamentos do sujeito e o receptáculo de um número cada vez mais considerável de objetos. Em segundo lugar, a mãe kleiniana é uma mãe não castrada, receptadora do pênis e fálica. Ela não apenas contém todos os objetos evocados, o pênis do pai e também o pai, já que a parte equivale ao todo, mas é, ela mesma, completa. Em outras palavras, trata-se de uma mãe anterior à castração, no sentido como Freud entende a castração enquanto aquilo que põe fim à onipotência materna, depois que a criança vê que ela não tem aquilo que o pai supostamente possui.
Há uma diferença entre a mãe freudiana e a mãe kleiniana, pois o grande trauma, para Klein, não é, justamente, a visão da castração da mãe, não é a castração representada pela possível privação do pênis; é o trauma do desmame, ou seja, do fato de que o sujeito depende, em sua vida animal, do seio que satisfaz, e, em sua vida humana, do seio que cria uma falta quando se faz ausente ou presente. Por fim,a mãe é portadora do seio, é mamófora, se me posso permitira expressão. É necessário notar que houve uma degradação dos conceitos de seio e de mãe, que são objetos primordiais, míticos, isto é, pertencentes à ordem discursiva, em prol do seio e da mãe da realidade; isso acarretou uma confusão desses dois níveis nas reflexões e na prática psicanalíticas.
A mãe é portadora do Seio, de um seio filogenético, mítico, é definitivamente portadora do Bem Supremo.
Mas, como o bebê sente que não tem a gratificação máxima e o gozo total do seio, ele sente “uma profunda nostalgia
do objeto-ímpar que poderia lhe proporcionar isto”. Essa nostalgia profunda do seio mítico pode ser compreendida, proponho, como a satisfação alucinatória, ou seja,como a memória da pulsão.
A mãe mítica, portadora do seio, é, a um só tempo,aquela que provoca a nostalgia do seio, a satisfação alucinatória, enfim, a excitação máxima e a satisfação máxima, porém mortal, e é, ao mesmo tempo, aquela que aplaca, hora após hora, dia após dia, a tensão precedente.
A transferência e a castração
A precocidade do supereu, decorrente de sua origem pré-histórica e filogenética, que se liga muito depressa à constituição do supereu edipiano; a precocidade do conflito edipiano desde o desmame, que precipita uma “identificação com a mãe” nos dois sexos; e, por fim, o lugar central conferido à mãe como metáfora da outra cena, lugar do deslocamento dos objetos internalizados, foram os três avanços que permitiram a M. Klein estabelecer a possibilidade da transferência no tratamento com crianças pequenas, ao contrário do que afirmava A. Freud.
A originalidade da concepção da castração em M. Klein prende-se à tríade princeps mãe/filho/objeto (seio, fezes, pênis) em relação à tríade freudiana de 1923, mãe/filho/falo. A originalidade da concepção do falicismo da mãe deve-se ao processo defensivo de deslocamento do pênis do pai para ela. Se a mãe aparece como estragada, amputada — variação da castração—, não é pelo fato de a criança ter visto a ausência do pênis, mas por ela haver tomado fantasisticamente o seio ou o pênis.
O que falta na mãe é o que a criança lhe tira; assim, esta poderá devolver-lhe isso e reparar a mãe“castrada”: ódio e reparação, inveja e gratidão.
Melanie Klein tinha, até esse momento, uma concepção da castração de tipo retaliador, persecutório e imaginário, uma concepção certamente regida pela lei da troca: o que o menino tirasse da mãe, ele daria a sua mulher; o que a menina houvesse recebido da mãe, daria a seus filhos. A dimensão simbólica da castração, isto é, a perda que tem efeitos de simbolização, seria uma conseqüência da problemática do luto, tal como Melanie Klein a destacaria na saída da posição depressiva.
Em 1932, M. Klein escreveria Psicanálise da criança, obra que expôs o conjunto de seus primeiros avanços. Estes logo seriam retomados, reorganizados e prolongados pelo que seria verdadeiramente a inovação de M. Klein no campo da psicanálise, a saber, a fase esquizo-paranóide e a posição depressiva.
A metapsicologia kleiniana e suas
A metapsicologia kleiniana elabora todo o princípio da constituição do eu, do narcisismo primário e, depois, secundário, ou seja, a passagem do complexo do desmame, da fase feminina, para o complexo de Édipo, sob os termos fase esquizo-paranóide E posição depressiva.
Esses termos, “fase” ou “posição”, marcam também a preocupação de Melanie Klein de não reduzir esses momentos à época do desenvolvimento da primeira infância. Ao contrário, encontramos os mecanismos esquizo-paranóides e os depressivos mais tarde, na adolescência e na idade adulta.
Trata-se de posições subjetivas ou de passagens a uma outra posição subjetiva, bem como de etapas do desenvolvimento psíquico.
O tríptico da posição depressiva
Configura-se a partir das suposições de Klein uma posição central no desenvo-vimento da criança: a posição depressiva infantil, , que podemos definir assim: o bebê, o sujeito, por volta dos seis meses, acha-se numa posição talem relação a sua mãe que a apreende pela primeira vez como uma totalidade, como um objeto completo, e não mais por suas partes (seio, mãos, rosto etc.). Esse novo ponto de vista tem um efeito depressivo.
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Melanie Klein articulou clara e plenamente a posição depressiva e as numerosas defesas erguidas para combater a depressão e o luto decorrentes da perda do objeto.
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Klein conferiu toda a sua amplitude a um estado que precedia a posição depressiva, um estado reconhecido desde longa data, dominado por angústias paranóide s e pela clivagem do objeto primordial em um objeto bom e um objeto mau.
A fase esquizo-paranóide
O sujeito só vivia através do seio, sendo o seio (“seio” em seu sentido pleno: a um tempo mítico e salvador em relação ao desamparo do recém-nascido). Mas o bebê, o sujeito, corre o risco de ser aniquilado pelo seio: ou desaparece no seio quando este se acha presente, já que ele é o seio, isto é, existe o nada ou a satisfação alucinatória que o anula como sujeito, quando o seio está ausente. Trata-se de um estado de angústia extrema, primitiva, uma angústia que é sentida como o medo de ser aniquilado e que assume a forma do medo da perseguição. Sua função principal é administrar essa angústia essencial, clivando o objeto: a defesa primordial no sistema kleiniano é a clivagem.
O seio, como objeto primordial, é dividido em seio bom e seio mau, ou num bom objeto que o sujeito possui e num mau objeto que está ausente. É assim que se instaura uma alternância entre o sujeito e o objeto, entre o ser e o ter: por não ter o objeto, o sujeito passa a sê-lo, alternância de onde se origina a identificação secundária. A clivagem divide o seio em bom, ou seja-presente - e mau-ausente. Mas, ao mesmo tempo que se instala a clivagem, instauram-se os mecanismos da introjeção e da projeção.
A introjeção participa do mecanismo geral da internalização, mas fragmenta os objetos, ao passo que a identificação, que participa do mesmo mecanismo, concerne aos objetos em sua totalidade. Uma vez introjetados, os objetos “bons” ou “maus” permanecem no interior da outra cena, onde serão definitivamente inscritos.
A projeção, ou ejeção, é a tentativa de expulsar o sadismo, ou então o objeto “mau”. Embora projetado, o objeto continua a ser um mau objeto internalizado, uma sombra marcada no eu, e tão mais perigosamente ameaçador quanto mais é sadicamente projetado. O seio mau, portanto, tem dois níveis de definição: em primeiro lugar,ele é o seio ausente; em segundo, e por conseguinte, é o seio internalizado,isto é, parcial, “bom” ou “mau”. O sujeito introjeta o objeto fantasístico alimentando-se dele, mas também o devorando, retalhando.
A fase esquizo-paranóide é dominada pelo sadismo. As pulsões sádicas orais, anais e uretrais se juntam para se apoderar do seio. A criança fica dominada pelo medo de uma vingança; é submetida a sentimentos e fantasias de perseguição. A mãe é então identificada como má, e se dá a identificação projetiva.
A natureza arcaica desse mecanismo só está normalmente presente no bebê, como resquício das angústias e dos mecanismos esquizo-paranóides, e desaparece no início do segundo ano. A identificação projetiva persiste na psicose.
Felizmente, como prosseguem os mecanismos de introjeção e projeção e como o “bom” objeto, desde o início, tem uma influência fundamental no processo de desenvolvimento, o eu vem a se organizar.
À medida que a introjeção e a projeção permitem o deslocamento de um objeto para outro, as imagens internalizadas aproximam-se mais estreitamente da realidade, e a identificação do eu com os objetos bons torna se mais completa. Essa evolução é paralela a uma mudança da mais alta importância: de uma relação com objetos parciais e disjuntos — “bons” e “maus” —, o sujeito passa para a relação com seu objeto fundamental e prevalente: a mãe como um todo.
A posição depressiva
Por volta dos seis meses, o eu da criança vê-se diante da necessidade de reconhecer tanto a realidade psíquica quanto a realidade externa; A criança passa a conhecer a mãe como uma pessoa inteira e então se identifica com uma pessoa completa, real e amada. A posição depressiva caracteriza-se, inicialmente, pelo
lugar , pela posição que o sujeito ocupa em relação à mãe, a quem apreende como uma totalidade, uma forma completa. A criança investe libidinalmente essa forma completa, que se torna objeto de amor, e não mais apenas objeto dos desejos; é o narcisismo secundário. Em seguida, essa posição dá ensejo à situação a que chamamos perda do objeto. “De fato, a perda do objeto não pode ser sentida como uma perda total enquanto este não é amado como um objeto total”
Essa operação é decisiva num tratamento. A transposição dessa etapa tem um efeito depressivo, e o sadismo diminui.
As razões da depressão (razões estas que se conjugam entre si).
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A ação persistente da angústia persecutória dos “maus” objetos parciais traz o risco de destruir, de matar o objeto de amor, o objeto total. O sujeito tem que se confrontar com o fato de que o objeto de amor é o mesmo que o objeto de ódio.
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O sujeito percebe, nesse mesmo momento, sua própria impotência para proteger seu bom objeto total dos objetos persecutórios anteriormente internalizados. Essa impotência, assemelhada a uma fraqueza mortal, tem um efeito depressivo.
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O medo de perder o objeto amado, sua perda e o desejo de recuperá-lo provocam “nostalgia” do primeiro objeto anterior à clivagem, o Seio.
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Por fim, a identificação do objeto em sua totalidade, como forma completa, permite ao eu constituir-se igualmente como forma total. A forma total do eu, portanto, está na dependência do objeto amado.
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Essas razões — a persistência da angústia persecutória, a impotência,a nostalgia, a dependência e a proximidade entre o amor e o ódio — estão na origem da depressão infantil.
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Essas razões acham-se também na origem das depressões da idade adulta, por ocasião dos grandes sofrimentos e das grandes inibições.
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As defesas maníacas, em que os sentimentos de onipotência tentam controlar os “maus” objetos destruidores.
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Defesas pela fuga: fuga para os “bons” objetos internos (psicoses, autismo) e fuga para os bons objetos externos (estados amorosos repetitivos nas neuroses).
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Reparação ou restauração: o sujeito é obrigado a reparar o “desastre criado por seu sadismo”. Restituir a integridade ao objeto de amor tem um efeito de restauração do eu. Portanto, faz parte do trabalho do luto.
A única superação verdadeira da posição depressiva é o trabalho do luto, tanto do luto da mãe quanto do seio, isto é, o luto da pessoa fantasística. Isso não significa que a mãe esteja morta, mas que o “bom extraordinário”, o Bem Supremo que ela representa, é perdido tão logo é atingido.Examinar em detalhe o mecanismo do luto seria demorado.
A posição depressiva caracteriza-se por ser o momento crucial do curso do desenvolvimento, no qual o sujeito consegue, encontrando aos poucos a boa posição, realizar a mãe como objeto em sua totalidade e, com isso, consegue, em primeiro lugar, organizar o mundo caótico dos objetos parciais, colocando-os dentro ou fora dessa forma total, o que caminha de mãos dadas com uma diminuição da angústia; e, em segundo lugar, entrever a perda do objeto de amor que é a mãe, mas que, em última análise, é o seio que ele mesmo foi no passado. Daí a depressão (impotência,nostalgia e dependência) e o luto.
Com efeito, mesmo que se hajam obtido resultados satisfatórios no correr do tratamento, o término dele, inevitavelmente, faz com que ressurjam sentimentos dolorosos e sejam reativadas as angústias originárias de perseguição e depressão. Isso pressupõe não apenas a análise das primeiras experiências de luto, mas também que o término do tratamento equivale a um estado de luto. O trabalho do luto, aliás, prossegue após o término das sessões.
A inveja
A inveja está ligada ao complexo de Édipo: fala-se em inveja do pênis na menina ou em
inveja da feminilidade e da gravidez no menino, nos casos de inversão do Édipo. Para Melanie Klein, esse desejo é complexo, pois a inveja do pênis do pai, que tem existência própria, é reforçada por duas fontes: inveja do corpo da mãe e inveja de tudo o que ele contém, o pênis e os bebês.
Mas a inveja deriva, na verdade, de uma forma originária, que é a inveja do seio: essa é a primeira emoção fundamental na relação do sujeito com o seio materno e com a mãe.
Essa relação, aliás, provém de uma inversão: “Ter feito parte do corpo materno”, escreveu Melanie Klein, “durante a gestação por certo contribui para o sentimento inato da criança de que existe, fora dela, alguma coisa capaz de satisfazer todas as suas necessidades e todos os seus desejos. O seio bom, incorporado, é desde então parte integrante do eu; a criança, que inicialmente se achava no interior da mãe,agora coloca a mãe em seu próprio interior”.
A inveja, portanto, é o sentimento de cólera experimentado pelo sujeito quando ele teme que um outro, a mãe ou outra criança, possua essa coisa desejável e goze com ela, a “jalouissance”, diria Lacan.
A inveja do seio tanto pode ser provocada pela gratificação do seio bom, já que a gratificação é a prova dos recursos infinitos do seio, quanto pela frustração ou pela perda do seio, se realiza pela depredação, pela danificação do seio e pela introdução, no seio materno, de tudo o que é mau: os “maus excrementos”ou as “partes más” de si.
A inveja significa, literalmente, “lançar o olhar mau” [o mau-olhado],invideo.
Aí reencontramos o grande tema kleiniano — já explorado a propósito da fase esquizo-paranóide. Nesse ponto, no entanto, Melanie Klein parece haver deparado com dois limites do círculo vicioso infinitamente retorcido. E estes constituirão minhas duas últimas observações.
O primeiro limite é a consideração da ausência do seio que se entreabre para a ausência pura, para o vazio sem maldade, nem ataque, e portanto, nem reparação.
O segundo limite é o fracasso da análise da transferência negativa ligada à inveja, nos pacientes que apresentam angústias paranóides e mecanismos esquizóides, sem, no entanto, serem psicóticos.
Mas é possível que, mais do que uma análise forçada da transferência negativa — que, comosublinhei, continua a ser uma questão importante, esses pacientes esperem o reconhecimento de um desejo, algo assim como um dúbio “seio-a-mais”.