Selma Pereira


Psicanálise - O Desenvolvimento do Ser Humano
Psicanálise - O Desenvolvimento do Ser Humano

 

D. W. WINNICOTT - A partir de Násio

 
O ser humano traz em si uma tendência inata a se desenvolver e a se unificar”.
 
Ao longo de toda sua obra, Winnicott enfatizou a influência do meio ambiente no desenvolvimento psíquico do ser humano. Para Winnicott, como para todos os autores que estudam sua evolução,o ser humano traz em si uma tendência inata a se desenvolver e a se unificar.Essa tendência atualiza-se no funcionamento dos processos de maturação.No plano psíquico, a expressão “processo de maturação” aplica-se à formação e à evolução do eu, do isso e do supereu, bem como ao estabelecimento dos mecanismos de defesa elaborados pelo eu num indivíduo sadio. A saúde psíquica, portanto, repousaria no livre desenrolar desses processos de maturação. Entretanto, é o ambiente, inicialmente representado pela mãe ou pó rum de seus substitutos, que permite ou entrava o livre desenrolar desses processos. Seguindo esse fio condutor, definido pela interação entre o meio e o desenvolvimento psíquico do ser humano, examinaremos as duas primeiras fases da vida. Primeiramente, a fase inicial, desde o nascimento até os seis meses, em que a criança pequena acha-se num estado de
Dependência absoluta
em relação ao meio, isto é, à mãe. Depois, a segunda fase, dos 6meses aos 2 anos, em que a criança se encontra, ao contrário, num estado de
dependência relativa
.Sempre preocupados com a influência do meio, estudaremos em seguida os distúrbios psíquicos cuja etiologia se situa exatamente no curso dessas duas fases, e as orientações terapêuticas propostas por Winnicott para o tratamento desses distúrbios.
 
A fase de dependência absoluta
Tomemos o primeiro ponto: a evolução psíquica do ser humano durante a fase de dependência absoluta. Nos primeiros seis meses de vida, aproximadamente, que o ser humano bebê acha-se num estado de total dependência do meio, representado, nessa época, pela mãe ou por um seu substituto. O bebê depende inteiramente do mundo que lhe é oferecido pela mãe, porém o mais importante, e que constitui a base da teoria de Winnicott, é o desconhecimento de seu estado de dependência por parte do bebê. Na mente do bebê, ele e o meio são uma coisa só. Ora, idealmente, seria por uma perfeita adaptação às necessidades do bebê que a mãe permitiria o livre desenrolar dos processos de maturação.
 
As três funções maternas
Nos primórdios da vida, as necessidades do bebê por certo são de ordem corporal, mas há também necessidades ligadas ao desenvolvimento psíquico do eu. A adaptação da mãe a essas necessidades do bebê concretiza-se através do emprego de três funções maternas:
- A apresentação do objeto
- O holding
- O handling
Essas três funções são simultaneamente exercidas, mas, a bem da clareza, vou abordá-las em separado:
 
Primeira Função - De apresentação do objeto
Pareceu-me que o exemplo mais impressionante é a apresentação do seio ou da mamadeira. Essa oferta começa com o que Winnicott denomina de primeira refeição teórica,que é também uma primeira refeição real. Só que essa primeira refeição teórica é representada, na vida real, pela soma das experiências precoces de muitas refeições. Dada a extrema imaturidade do recém-nascido, a primeira refeição não pode assumir, a priori, a significação de uma experiência emocional, mas, “em razão de um estado vital na criança e graças ao desenvolvimento da tensão pulsional, a criancinha passa a esperar alguma coisa; e então surge alguma coisa que logo assume uma forma, é a mão ou a boca que se estende naturalmente para o objeto”.
 
Durante essa primeira refeição, a mãe apresenta o seio ou a mamadeira no momento em que o bebê está pronto para imaginá-lo, e portanto, para encontrá-lo. Ao oferecer o seio mais ou menos no momento certo, ela dá ao bebê a ilusão de que ele mesmo criou o objeto do qual sente confusamente a necessidade. Ao lhe dar a ilusão dessa criação, a mãe permite que o bebê tenha uma experiência de onipotência, isto é, que o objeto adquira existência real no momento em que é esperado. Durante esse período de dependência absoluta, a mãe, que age de maneira a estar disponível diante de uma excitação potencial do bebê, permite que este adquira, no correr das mamadas, a capacidade de assumir relações estimulantes com as coisas ou as pessoas. Em outras palavras, o ser humano torna-se capaz de experimentar emoções, sentimentos de amor ou de ódio, sem que eles representem uma ameaça potencial e sejam, necessariamente, uma fonte de angústia insuportável.
 
Segunda Função - o holding
A sustentação. A mãe protege o bebê dos perigos físicos, leva em conta sua sensibilidade cutânea, auditiva e visual, sua sensibilidade às quedas e sua ignorância da realidade externa. Através dos cuidados cotidianos, ela instaura uma rotina,seqüências repetitivas. Com essa função de holding, Winnicott enfatiza o modo de segurar a criança, a princípio fisicamente, mas também psiquicamente. A sustentação psíquica consiste em dar esteio ao eu do bebê em seu desenvolvimento, isto é, em colocá-lo em contato com uma realidade externa simplificada, repetitiva, que permita ao eu nascente encontrar pontos de referência simples e estáveis, necessários para que ele leve a cabo seu trabalho de integração no tempo e no espaço.
 
Terceira função - o handling
Manipulação do bebê enquanto ele é cuidado. A mãe troca a roupa do bebê, dá-lhe banho, embala-o etc. O emprego dessa terceira função materna é necessário para o bem-estar físico do bebê, que aos poucos se experimenta como vivendo dentro de um corpo e, com isso, realiza uma união entre sua vida psíquica e seu corpo. Uma união que Winnicott chama de personalização.
 
A mãe suficientemente boa
A mãe que, durante os primeiros meses de vida do filho, identifica-se estreitamente com ele, e que, na teoria, adapta-se perfeitamente a suas necessidades é chamada por Winnicott de mãe suficientemente boa. Ou seja, boa o bastante para que o bebê possa conviver com ela sem prejuízo para sua saúde psíquica. Essa mãe representa o ambiente suficientemente bom, cuja importância é vital para a saúde psíquica do ser humano em devir. A mãe suficientemente boa permite à criança pequena desenvolver uma vida psíquica e física fundamentada em suas tendências inatas. Assim, ela pode experimentar um sentimento de continuidade da vida, que é o sinal da emergência de um verdadeiro self, de um verdadeiro eu. Comesse termo, self verdadeiro, abordamos uma das noções mais abstratas da teoria winnicottiana.Winnicott quem propôs distinguir dois aspectos no self: um verdadeiro e um falso. Esses dois aspectos do self estão presentes em todos os seres humanos, mas em proporções extremamente variadas de um indivíduo para outro.
 
O  self  verdadeiro
O que nos interessa de imediato é o self verdadeiro . Segundo Winnicott,o verdadeiro self é a pessoa que é eu e apenas eu, ou seja, a pessoa que se constrói, fundamentalmente, a partir do emprego de suas tendências inatas. No começo da vida, o self verdadeiro não é muito mais do que o somatório da vida sensório-motora. Manifesta-se através dos gestos espontâneos, das idéias pessoais. “O gesto espontâneo é o self verdadeiro em ação. Só o verdadeiro self pode ser criador e só o verdadeiro self pode ser sentido como real”. A evolução psíquica do bebê, tal como acabo de expô-la, acha-se estreitamente ligada, portanto, à presença de uma mãe suficientemente boa e, do lado do bebê, pressupõe uma ausência de fatores patológicos hereditários ou congênitos.
 
A mãe insuficientemente boa
Winnicott nos fornece diversas descrições desse tipo de mãe insuficientemente boa. Ela pode corresponder a uma mãe real ou a uma situação. Quando se trata de uma mãe real, Winnicott fala numa mãe que, em termos globais, não tem a capacidade de se identificar com as necessidades do filho. Em vez de responder aos gestos espontâneos e às necessidades do bebê, ela os substitui pelos seus. Entretanto, a pior das mães é a que, “logo de início,não consegue impedir-se de atormentar, ou seja, de ser imprevisível”, de passar, por exemplo, de uma adaptação perfeita para uma adaptação falha, ou de passar subitamente da intromissão para a negligência, de tal modo que o bebê não pode confiar nela, nem prever nenhuma de suas condutas.
 
Em alguns casos, a mãe insuficientemente boa não designa o comportamento de uma mãe real, porém uma situação em que os cuidados são prodigalizados à criança por diversas pessoas. A criança depara então com uma mãe dividida em pedaços e tem a experiência da complexidade dos cuidados que lhe são prestados, e não da simplicidade que seria desejável. Conforme as circunstâncias, portanto, a mãe insuficientemente boa é representada por uma pessoa ou por uma situação. A propósito desse segundo caso ilustrativo,Winnicott escreveria que mãe insuficientemente boa é o nome dado por ele,“não a uma pessoa, mas à ausência de alguém cujo apego à criança seja simplesmente comum”
 
Distúrbios psíquicos cuja origem situa-se na fase de dependência absoluta. Orientações terapêuticas
Examinemos agora os efeitos que terá essa mãe insuficientemente boa na evolução psíquica da criança. Para compreender esses efeitos, é preciso admitir que, durante essa fase de dependência absoluta, as falhas de adaptação da mãe não são sentidas pelo bebê como frustrações, isto é, como recusas de satisfações pulsionais.
 
As falhas de adaptação provocam carências na satisfação das necessidades e criam obstáculos ao desenrolar dos processos vitais.Nessa época, o bebê necessita de uma mãe que dê esteio ao nascimento e desenvolvimento das principais funções do eu, quais sejam, a integração no tempo e no espaço, o encontro com os objetos do mundo externo e a unificação entre a vida psíquica e o corpo.
 
Quando o bebê é privado dessa mãe, a maturação do eu não pode se efetuar e o desenvolvimento das funções principais fica bloqueado ou distorcido. Durante essa fase, convém pensar no bebê como um ser imaturo, que está, o tempo todo, à beira de uma angústia inimaginável, impensável.Quando a mãe não cumpre sua função de sustentação do eu, o que surge é essa angústia impensável. A angústia é, nesse caso, portadora de uma ameaça de aniquilação, cujas principais variações são as seguintes:
- Despedaçar-se.
- Ter a impressão de uma queda infindável.
- Sentir-se levado para alturas infinitas.
- Não ter relação com o próprio corpo e, por fim, não ter orientação espaço-temporal.Segundo Winnicott, essas variações constituem a essência das angústias psicóticas.É em função dos graus e variedades das carências de adaptação materna e da maneira como o bebê consegue arranjar-se com isso que elevem ou não a evoluir para uma forma de organização patológica da personalidade.
 
Lembremos algumas dessas organizações patológicas:
- A esquizofrenia infantil ou autismo (note-se que Winnicott não distingue essas duas estruturas clínicas).
- A esquizofrenia latente, que poderá manifestar-se mais tarde, em particular em fases de tensão e fadiga.
- O estado limítrofe, em que o núcleo do distúrbio é de natureza psicótica,embora o paciente se apresente como neurótico.
- A personalidade construída com base num  falso self . Neste último caso, a formação de um falso self  é o traço principal da reação do bebê às falhas de adaptação da mãe. Frente a uma mãe incapaz de sentir suas necessidades, o bebê renuncia à esperança de vê-las satisfeitas. Adapta-se a cuidados maternos que não lhe convêm. Submete-se às pressões de uma mãe que lhe impõe uma maneira inadequada de exprimir suas tendências inatas e que, por conseguinte, obriga-o a adotar um modo de ser falso e artificial. O bebê desenvolve uma personalidade construída a partir de um falso self. Nos casos extremos, esse self artificial é clivado do self verdadeiro, que, por sua vez, fica bloqueado em sua expressão. A organização da vida psíquica baseada num falso self  leva o indivíduo a experimentar um sentimento de irrealidade a respeito de si mesmo,dos outros e da vida em geral. Ao chegar à idade adulta, ele se comporta como um camaleão que se funde com o meio ambiente e reage especularmente às pessoas de seu círculo. Por isso, sua capacidade de adaptação ao ambiente é hipertrofiada. Mas um sentimento persistente de irrealidade, de vacuidade,pode acarretar graves descompensações.
Por fim, eis o último distúrbio psíquico cuja etiologia situa-se nessa fase:
- A  personalidade esquizóide , que se refere a uma personalidade sadia na qual encontramos, no entanto, elementos esquizóides, provenientes do emprego de mecanismos de clivagem.
Para distinguir as orientações terapêuticas concernentes a esses diferentes distúrbios, Winnicott raciocinaria a partir do tratamento analítico tal como elaborado por Freud. Ele considerou que esse tipo de tratamento destinava-se a pacientes que, durante sua primeira infância, haviam recebido cuidados suficientemente bons.
 
Sua organização psíquica seria de ordem neurótica. As coisas seriam totalmente diferentes nos pacientes cuja etiologia dos distúrbios se situasse nos primeiros meses de vida. Com um paciente assim, a opção terapêutica era muito distinta. Era indispensável, nesses casos, levar em conta a vulnerabilidade e as distorções mais ou menos graves sofridas pelo eu, por causa de carências de adaptação precoces e maciças. Quanto a tal paciente, a possibilidade de cura ou de uma melhora de seu estado passaria por um redirecionamento dos processos de maturação da primeira infância.
 
Esse redirecionamento só pode ter lugar no contexto de uma relação de dependência extremamente forte, ou mesmo absoluta, com o terapeuta. Quando se instala essa dependência, o analista fica no lugar da mãe suficientemente boa, que se supõe que atenda às necessidades do bebê,ou, dito de outra maneira, àquilo de que o bebê necessita para o livre desenrolar dos processos de maturação.É graças a sua capacidade de identificação com as necessidades do paciente que o analista assegura, no nível simbólico, uma função de sustentação psíquica (holding) que cria uma situação de confiança. Por exemplo, se o paciente precisa de quietude, não se pode fazer nada senão oferecê-la a ele.Um paciente encolhe-se no divã, apóia a cabeça na mão e parece ficar acomodado, satisfeito; o doente está só. O analista não deve intervir, mas reconhecer que está sendo utilizado pelo paciente de maneira muito primitiva e muito positiva.
 
É possível que um analisando molhe o divã, se suje ou babe. Esses comportamentos, longe de serem uma complicação da relação analítica, são naturalmente inerentes a esse tipo de situação terapêutica. O psicanalista não tem que dizer ou fazer nada.A capacidade do analista de se identificar com as necessidades do paciente libera os processos de maturação e acarreta um descongelamento da situação primitiva de carência ambiental.
 
Ela permite ao eu uma evolução suficiente para que o paciente possa sentir cólera e exprimi-la quando surgir uma inadaptação na situação analítica. Essa cólera vem substituir as angústias inimagináveis da época primitiva, pois o eu adquire a capacidade de utilizar as carências para se enriquecer e a capacidade de vivenciar emoções sem risco de aniquilamento. A seqüência se constitui:
- Da adaptação do analista às necessidades do paciente,
- Da liberação dos processos de maturação,
- Da intervenção de uma falta de adaptação,
- Da cólera sentida e expressada pelo paciente,
-Do novo progresso do eu.Essa seqüência repete-se incansavelmente ao longo de todo o trabalho terapêutico. Nos casos mais favoráveis, esse trabalho evolui progressivamente para uma análise clássica.
 
Fase de dependência relativa
Abordemos agora a segunda fase da vida. Ela se estende, aproximadamente dos 6 meses aos 2 anos. Para a criança pequena, trata-se de uma fase de dependência relativa da mãe e dos substitutos parentais, que agora intervêm de maneira mais freqüente. A dependência é relativa porque a criança se conscientiza de sua sujeição e, por conseguinte, tolera melhor as falhas de adaptação da mãe, assim se tornando capaz de tirar proveito delas para se desenvolver. Quando se aproxima dessa segunda fase, a criança já progrediu consideravelmente. Está em condições de reconhecer os objetos e as pessoas como fazendo parte da realidade externa. Percebe a mãe como separada dela e realiza uma união entre sua vida psíquica e seu corpo. Sua capacidade de se situar no tempo e no espaço também se desenvolveu, sobretudo sua capacidade de se antecipar aos acontecimentos. Assim, os ruídos na cozinha, as palavras da mãe e os deslocamentos dela lhe indicam que o alimento logo estará pronto e que a mãe irá cuidar dela. Do lado da mãe, também se produziu uma evolução psíquica. Ela se desliga aos poucos de um estado de identificação com o filho, que fora intenso na primeira fase. Retoma sua vida pessoal e/ou profissional e introduz “falhas de adaptação” moderadas frente à criança. Ou seja, as “falhas de adaptação” da mãe são então ajustadas ao desenvolvimento da criança, o que permite a esta não apenas vivenciá-las sem prejuízo, como tirar proveito delas para sua evolução.Entretanto, para progredir no caminho da humanização, a criança ainda terá que resolver muitos problemas e continuará a ter necessidade da ajuda da mãe.
 
A primeira é “a mãe dos momentos de calma, de tranqüilidade”, de quem ele reconheceu o rosto, a voz, as atitudes etc. Em virtude do componente agressivo presente na pulsão oral, o bebê passa a imaginar que a satisfação de sua fome acarreta uma deterioração do corpo da mãe, que cava nele um buraco, um vazio. Durante a primeira fase da vida, a criança pequena não se preocupava com essa destruição, mas, agora, inquieta-se com ela, pois reconhece que depende da mãe para seu bem-estar. Para que a criança pequena reconheça que “a mãe dos momentos de excitação” não foi destruída, é-lhe necessário reconhecer que “a mãe dos momentos tranqüilos”, que ela reencontra após os momentos de tensão pulsional, é a mesma pessoa. Para efetuar a contento esse processo de integração das duas figuras maternas, ela precisa de uma mãe suficientemente boa.
 
Durante essa fase, a mãe suficientemente boa é a mãe que sobrevive. Isso significa, é claro, que ela não morre, não desaparece, mas também quer dizer muitas outras coisas. A sobrevivência da mãe implica que, na realidade, é a mesma pessoa que está presente e cuida da criança nos momentos de calma e nos momentos de tensão pulsional. A sobrevivência da mãe também é representada pelo fato de que a mãe dos momentos tranqüilos continua a cuidar da criança com a mesma atenção e a mesma ternura. A mãe que sobrevive é a mãe que não se ausenta por um tempo que ultrapasse a capacidade da criança de conservar uma representação viva dela, de acreditar em sua existência.
 
A criança passa a experimentar uma angústia depressiva, uma inquietação, pois é a mãe em sua totalidade que ela corre o risco de destruir com seus ataques agressivos.Por outro lado, a criança sente culpa, já que a mãe que é objeto de seus ataques é também a mãe amada e amorosa dos momentos tranqüilos.É por causa da angústia depressiva e da culpa que a criança pequena se empenha em atividades de reparação e restauração da mãe, quando sentida como danificada ou destruída. Essa reparação é empregada no nível fantasístico e, depois, na realidade, sob a forma de gestos de ternura e de presentes.Para que a criança pequena possa suportar a angústia e a culpa, portanto, ela precisa agir e reparar. Para tanto, precisa da existência de uma mãe suficientemente boa, de uma mãe que consiga sobreviver.
A experiência repetida da sobrevivência da mãe, no correr dos dias, permite à criança:
- aceitar como suas as fantasias e os pensamentos ligados à experiência pulsional;
- distinguir progressivamente essas fantasias e pensamentos do que acontece na realidade externa;
- ter a experiência de uma relação de excitação que não é destrutiva nem desestruturante.
 
 Os fenômenos transicionais
Em relação a essa fase da vida da criança pequena, convém dizer algumas palavras sobre atividades que Winnicott estudou longamente e que aparecem no correr do segundo semestre da vida. Para compreender a emergência e a significação dessas atividades, é preciso recolocá-las no contexto da evolução psíquica da criança pequena. Esquematicamente, depois de uma fase em que teve a ilusão de ser onipotente, de criar os objetos de suas necessidades, de ser uma só com a mãe, a criança descobre, pouco a pouco, que ela e sua mãe são separadas, que ela depende da mãe para a satisfação de suas necessidades e que a fantasia não corresponde à realidade. Após uma fase de ilusão, ela enfrenta a desilusão. É para se sustentar nessa experiência difícil,geradora de angústia e, em particular, de angústia depressiva, que a criança pequena desenvolve essas atividades. A observação delas na vida cotidiana dos bebês permitiu a Winnicott fornecer a seguinte descrição:
“1. O bebê leva à boca, junto com os dedos, algum objeto externo.
2. Segura um pedaço de tecido, que ele chupa ou não chupa realmente; os objetos geralmente utilizados são fraldas e mais tarde, lenços.
3. Desde os primeiros meses, o bebê começa a puxar fiapos de lã e a fazer com eles uma bolota.
4. Surgem atividades bucais acompanhadas por diversos sons.
 
A descrição dessas atividades frisa sua diversidade e nos indica que elas incluem ou não a utilização de um objeto. Todavia, apesar de sua diversidade, tais atividades têm uma característica comum. Revestem-se deu ma importância vital para a criança, que a elas se dedica em momentos em que poderia surgir a angústia, especialmente por ocasião das separações da mãe, na hora de dormir. Essas diversas atividades foram chamadas por Winnicott de fenômenos transicionais e, por extensão, quando algum objeto é utilizado, ele recebe o nome de objeto transicional. O adjetivo “transicional” indica o lugar e a função que esses fenômenos, esses objetos, ocupam na vida psíquica da criança. Eles vêm alojar-se num espaço intermediário entre a realidade interna e a realidade externa. Esse espaço, em virtude do lugar que ocupa, é igualmente qualificado de transicional.
 
Contudo, o importante não é a existência efetiva de um objeto, mas a existência de um espaço transicional, que pode, eventualmente, ser habitado por fenômenos transicionais que passam despercebidos aos olhos do observador. Quando existe um objeto transicional, esse objeto, como já evocamos, serve de defesa contra a angústia depressiva, mas podemos ir mais longe em sua descrição, porque esse objeto é carregado de significações. Ele representa a mãe.
 
Ele marca a passagem do controle onipotente, exercido na fantasia, para o controle pela manipulação. Antecede o reconhecimento da realidade externa percebida como tal, ou seja, não interpretada numa atividade fantasística.Quanto ao destino desse objeto, ele não é esquecido, mas desinvestido, quando deixa de ser necessário à criança. Na verdade, perde sua significação quando os fenômenos transicionais tornam-se difusos e se distribuem pelo espaço transicional, que situa-se entre a realidade interna e a realidade externa.Esse espaço transicional persiste ao longo de toda a vida. Será ocupado por atividades lúdicas e criativas extremamente variadas. Terá por função aliviar o ser humano da constante tensão suscitada pelo relacionamento da realidade de dentro com a realidade de fora.
 
Como nos outros campos do desenvolvimento psíquico, o ambiente desempenha um papel no aparecimento e na evolução dos fenômenos transicionais. Antes de mais nada, seu aparecimento é, para Winnicott, o sinal deque a mãe da primeira fase foi suficientemente boa. Quando se trata de um objeto, “os pais reconhecem seu valor e o carregam por toda parte, inclusive nas viagens. A mãe concorda em que ele fique sujo e cheire mal; não toca nele, pois sabe perfeitamente que, ao lavá-lo, introduziria uma ruptura na continuidade da experiência da criança pequena, uma quebra que poderia destruir a significação e o valor do objeto para a criança”.
 
Winnicott insiste na normalidade dos fenômenos transicionais; todavia, em alguns casos, podemos discernir uma psicopatologia. Por exemplo,quando a mãe se ausenta por um tempo que ultrapassa a capacidade da criança de mantê-la viva em sua lembrança, assiste-se a um desinvestimento do objeto. Esse desinvestimento pode ser precedido por um uso excessivo, que corresponde a uma tentativa de negação da separação da mãe e do sentimento de perda que ela provoca. Os diferentes distúrbios psíquicos ligados ao sentimento de falta de sobrevivência da mãe, no decorrer dessa fase, podem ser agrupados sob o termo “doenças da pulsão agressiva”, dentre as quais encontramos a tendência anti-social, a hipocondria, a paranóia, a psicose maníaco-depressiva e algumas formas de depressão.
 
No tratamento desses distúrbios psíquicos, Winnicott não propõe um manejo técnico do tratamento, mas chama a atenção para o fato de que a análise cuida de acontecimentos ligados ao embate entre a agressividade e a libido, entre o ódio e o amor, num estádio em que a criança se preocupa comas conseqüências de seu ódio e sente culpa por ele.
 
Como acabamos de ver, o ambiente constitui o esteio indispensável em que o ser humano se apóia para construir as bases de sua personalidade. A partir dessa perspectiva desenvolvimentista, é fácil imaginar que, para Winnicott, o ambiente continua a exercer influência na criança que cresce, no adolescente e até no adulto. Se essa influência descreve uma curva decrescente, ela nunca pára por completo. Assistimos ao estabelecimento progressivo de uma interdependência entre o indivíduo e o ambiente.
 
O interesse de Winnicott voltou-se para a vida dos recém-nascidos, dos bebês, e para os distúrbios cuja etiologia era anterior à fase edipiana. Por certo já existiam os trabalhos de Melanie Klein, autora que Winnicott considerava haver contribuído decisivamente para o estudo da vida dos bebês e para o campo da psicopatologia. Esse estudo levou-o a reconsiderar a técnica analítica clássica. Winnicott propôs uma nova técnica terapêutica, concernente aos pacientes que, em sua primeira infância, haviam deparado com um ambiente que fracassara na adaptação a suas necessidades. Em conclusão, poderíamos afirmar que o princípio que norteou o conjunto dos trabalhos de Winnicott foi a necessidade de criar um ambiente novo e adaptado a cada paciente