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Selma Pereira


Os Problemas
Os Problemas

Nunca fugiu de lugar algum. Pois não havia para onde fugir.
Nasceu na oitava constelação do zodíaco e quase no oitavo ano após a oitava década de 1900. Dia em que não houve chuva e nem sol, e nem poderia ser classificado em bonito nem feio. Era apenas um dia normal em que a família dos Pereiras ficou feliz e maior. Um ano após o seu nascimento, criou-se a famosa Constituição Cidadã, aboliu-se então a sangrenta Ditadura militar.
Brincou, estudou e cresceu. Aprendeu de tudo um pouco.
Nunca teve bons relacionamentos com religião. E sempre procurou se debruçar no vazio.
Ao se debruçar no vazio é que pôde descobrir que o vazio não é ausência e que, ao contrario do que se pensa está cheio. Cheio daquilo que não conseguimos admitir em nós mesmos. Tudo o que existe de lixo, de feio, de sujo, de deplorável dentro da gente deixamos no vazio para nos apresentamos fisicamente bem bonitinhos. O caos é isso. É tudo que se pode existir, porém desordenadamente. Ao se debruçar sobre o Grande Vazio, isento de religião, isento de moral, isento de tudo e ao mesmo tempo cheio de todas as religiões, transbordante de moral, desordenadamente padronizado e cheio de tudo. Foi ali, no Imenso e Infinito Vazio que se encontrou.
E começou a juntar o lixo.
Resgatar tudo aquilo que é sua face, seu perfil verdadeiro e é jogado fora, aquilo que bom ou ruim faz parte dela. Ou é ela. Se debruçar no vazio é isso. É ter coragem de encarar, de mostrar-se sem medo ou pudor.
No lixo, juntou toda a sua essência: tudo o que lhe pertencia, de bom e de ruim. Mas não se completou. Porque quis guardar tudo isso no coração, e o coração do homem é infinito. Lá também tem caminhos, para quem verdadeiramente deseja seguir um. E escolheu o caminho mais fácil, o que desembocava no Oco do mundo. E se lançou nele. De corpo e alma. Porque seguir um caminho é isso, é se jogar.
Mas o seu coração ainda não estava completo, faltava tudo. Embora tivesse esperança em tudo.
Então se jogou no Oco do Mundo, lá onde se tem de tudo, lá onde tudo é permitido, lá onde todos podem ser reis, lá onde tudo é da lei.
Como é no Oco do Mundo? É o Paraíso! Lá se tem o Deus que escolher, a vida que escolher, o veneno que lhe abre o apetite. Lá se perde a cabeça, se perde o juízo, lá a vida não é consumada e nada é pequeno.
Então escolheu a religião e se consagrou a um Deus, e o exalta a cada manhã. Exaltação que a deixa protegida e pronta para enfrentar o dia, que aliás não é nada fácil. Pois ter um Deus é isso: é ser livre.
Todas as noites dorme gostosamente e blasfema todas as vezes que percebe que o dia está amanhecendo. Todos os dias é o mesmo ônibus, o mesmo motorista, as mesmas pessoas. Às nove horas, sempre, recebe um pão de sal e um copo de leite, nunca imaginou que pudesse significar tanto.
Nunca gostou de trabalhar mas tinha pavor e muito medo de ficar sem trabalhar. Gostava do status que isso dá: levantar de madrugada, chegar quase na outra madrugada. Porque trabalhar é isso: Não ter tempo, estar sempre cansada.
Sempre gostou de estudar. Gostava de pessoas cultas e admirava quem sabia muito. Porque ser intelectual é isso: é ver o que lhe está em volta, compreender o que lhe é passado, criar a partir da própria intelectualidade.
Não era bonita nem feia. Mas tinha ares de importante, um certo poder, talvez. Sabia de tudo um pouco. Usava a lógica, a esperteza. Sempre desejou usar a força da mente. Algumas e raras vezes conseguiu.
Nunca foi totalmente lúcida, mas também não era louca. Embora a loucura lhe parecesse normal, a ponto de pensar que, se não fosse tão sofrida para as pessoas seria algo bonito de se ver e de se ouvir.
Mas um dia a tristeza bateu em sua porta, e o mundo desabou. Fez de tudo pra dar certo. E certo, como disse Fernando Sabino, só no final pra saber.
E agora está à espera de um Milagre.